- Evolução na vida a partir das insatisfações
- Posts
- A tristeza de um futuro com empregos
A tristeza de um futuro com empregos
#017 - E se o trabalho for, para sempre, apenas um emprego?
O email de hoje tinha como objetivo falar sobre o Significado do Trabalho, tema que muito me interessa e foi minha dissertação do mestrado.
Durante uma conversa com a colega Alice me lembrei como gosto de ficção científica, mas sempre com um caráter humano (nada de monstros ou coisas do tipo). Uni então, as duas coisas. Uma história que gera reflexão sobre o que é o trabalho, e talvez uma reflexão de que trabalho queremos para o futuro.
Ainda experimentando formas de falar e escrever, espero que gostem e deem feedbacks.

Sábado, 14 de dezembro de 2024. 16:09 p.m.
Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.
São 7:59 am quando, em um ônibus lotado, passando pelo final da avenida que sai do subúrbio da megacidade de Varresan, Eli - nosso personagem - se lembra que deixou a máquina de passar camisas ligada em casa.
Essas máquinas foram inventadas lá pelo ano 2099, e ajudaram muito a não ter que ficar passando roupa com ferro elétrico, como seus antepassados faziam.
A essa altura da viagem não dá para voltar, pois chegarei atrasado - pensa Eli. A cidade ao redor está cinza, chove lá fora e há indícios de uma onda de calor que só piora a cada ano.
Ono, seu chefe, dificilmente veria com bons olhos mais um atraso - pensa Eli, preocupado. Na última semana, já foi levar o filho ao médico, e, por isso, tomou um aviso por se tratar da terceira vez no ano.
Como se atreve a esse descaso com o emprego mais uma vez? - Lembrou-se das palavras de Ono, em uma carta formal.
Eli tem que pagar as contas ao governo/empresa que hoje comanda os países ocidentais, e não pode se dar ao luxo de perder esse emprego. Ele liga para sua mãe - que cuida dos dois filhos e do cachorro para que ele possa ir trabalhar - e pede que vá à sua casa fazer esse favor, pois a máquina ligada já incendiou uma casa vizinha em um descuido desses.
Tanta tecnologia para não resolver esse tipo de coisa! Prometeram resolver nossas vidas há mais de cem anos e só piora para nós! - pensou Eli.
Ali, mãe de Eli, prontamente, como sempre, se dispôs a ajudar o filho. Demorou uns vinte e dois minutos para aprontar as duas crianças para a caminhada de pouco mais de dez minutos que separa sua casa da casa do filho. A passarela que separava um lado do outro da avenida tinha cem metros, com carros, trens e ônibus disputando o espaço congestionado. Ali atravessou, com um no colo e o outro andando, subiu no prédio do filho e, tendo sua chave reserva, conseguiu entrar para desligar a máquina.
Eram 8:55 am quando Eli chegou ao prédio da empresa de tecnologia onde trabalhava, com seu chefe já olhando torto, pois por pouco não se atrasara.
No 34º andar - onde fica a sede da empresa -, ao entrar, já se vê muitos robôs trabalhando. Alguns atendendo aos humanos, alguns limpando o ambiente e filtrando o ar, alguns servindo comida para quem pede. Há, ao todo, 343 robôs humanoides e o trabalho de Eli é monitorar e consertar eles quando quebram ou apresentam defeito. Na última terça-feira um deles foi pego tentando beber água, mas, por razões óbvias, a única coisa que conseguiu foi molhar todo o chão da cozinha.
Ono atravessou o salão e, vendo Eli entrando às 8:55am, soltou mais uma piada de mau gosto: “Por mais seis minutos era justa causa, hein”. Ono tem uma visão centralizadora e controladora, e, por ser acionista na grande empresa e parente dos donos, acaba promovendo injustiças e uma gestão muito pouco humana - talvez conviva demais com seus robôs, que são sucesso no mercado.
Eli engoliu em seco e, mais uma vez, deu um sorriso amarelo após receber um grande tapa no ombro.
Eli ouvia histórias de sua mãe sobre a Inteligência Artificial (IA) e como havia sonhos em melhorar a vida dos humanos, lá por 2024, quando começaram a surgir os cursos sobre Agentes Autônomos e os primeiros robôs humanoides. Nessa mesma época começou uma moda de ter nomes curtos para as crianças, por isso Ali, e depois Eli, e seus filhos Isi e Mud.
Por ouvir muitas histórias da mãe, que trabalhava com tecnologia também e foi pioneira em computação quântica, Eli sempre quis seguir os passos, mas, por mais acessível que fosse a informação, a velocidade das empresas andava sempre mais rápido, e os cursos específicos eram muito caros. Quando conseguiu o emprego na empresa ficou muito feliz, e acabou ficando como programador especialista na manutenção dos robôs.
Já eram 16:31pm quando, na sala de controle central de monitoramento dos robôs, apareceu um alerta vermelho piscando no painel central. Eli rapidamente olhou nos monitores e indicava ser o IS032, o mesmo que tentou beber água na última semana. Esse robô já tinha dado problema da última vez, pois, ao rodar o programa de desligamento automático, o humanoide tinha um antivírus que funcionava como um sistema imunológico, e combatia as linhas de código que ordenavem seu desligamento. Dessa vez não foi diferente. O sistema de segurança funcionava bem, outros robôs da equipe de segurança mantinham o IS032 longe de causar mais problemas, em uma sala de segurança monitorada. O firewall de segurança não funcionou remotamente e Eli precisou usar a base de computadores quânticos para vencer o sistema imunológico do robô. Com toda a capacidade de processamento da empresa, a força do robô em melhorias no código de defesa eram impossíveis, e em quatro minutos a situação foi controlada, e o IS032 definitivamente desmontado.
Eli vai ao banheiro da empresa.
O banheiro é monitorado, mas Eli sabe que, se for na cabine dois e chegar a cabeça para frente, não pega na câmera.
Por dois minutos ele chorou.
Não aguento mais ouvir piadas e sarcasmo desse cara. Esse não era o sonho da minha mãe, nem o meu! - pensou Eli.
Lá pelas 17:12pm, Eli estava no escritório central tomando um café após o acontecido, quando Onu o convocou para uma reunião.
Ao entrar na sala, já sabia o que iria acontecer, pois a diretora do Departamento de Recursos (DR) estava na sala. O departamento tinha duas diretorias, o de recursos humanos e o de recursos humanoides, e entrar em uma sala com a de recursos humanos - especialmente em um dia como hoje - provavelmente não seria boa coisa.
Na frente dela Onu agia diferente, era mais educado. Eli ouviu aquela história toda, ou fingiu que ouviu, pois sua cabeça já não estava mais lá.
Às 18:32 pm, antes do normal, Eli já estava pegando o trem para descer no ponto do ônibus que o deixaria perto de casa. Pensamentos de preocupação: será que conseguirei outro emprego?, pensa. Mesmo que tivesse meses de assistência do governo e cursos de capacitação, era algo que mal pagava as contas ou gerava diferencial no mercado, que mudava a cada semana.
Passou um filme em sua cabeça. Os antigos falavam de quando surgiu a Alexa, assistente pessoal, e todos ficaram animados. Sua mãe contava de quando, ainda em 2025, construiu seu primeiro agente autônomo, que ajudava em tarefas operacionais. Lembra também com carinho do primeiro robô assistente que tiveram em casa, o IV332. Era uma linha ainda muito pouco evoluída, apenas arrumava coisas do chão, mas dava muito trabalho programar os locais certos para ele guardar. No final acabou ficando mais para carregar coisas pesadas e vigiar a casa, mas era ótimo para contar piadas e ajudar a tirar a mesa.
Chegou na casa da sua mãe por volta das 19:32 pm e teve vergonha de falar o que houve. Pegou as crianças, agradeceu pela ajuda, e foi para casa. Atravessando longa passarela, com o trânsito parado e nuvens de poeira e poluição pelo ar, mais uma vez se viu pensando o que fizemos com esse mundo?
Em casa conversou com Ami, sua esposa. As crianças já tinham dormido. Chorou mais uma vez. Tomou um remédio para conseguir dormir e ver o que fazer no dia seguinte para arrumar outro emprego o quanto antes. Qualquer coisa menos pior, qualquer coisa que pagasse as contas.
À noite, com o remédio pesado, Eli até sonhou. Sonhou que, em algum momento no passado, alguém tivesse pensado para que serve o trabalho? Qual o significado do trabalho? - e isso teria feito a diferença cento e cinquenta anos depois.
Até que acorda.
Reply